No início de setembro, Tony Blair pronunciou um discurso em que delineava os contornos para a dita respect agenda (agenda do respeito). Ele enfatizou temas e razões familiares, diferenciando aquilo que definiu como a “maioria ordeira” de uma “minoria ingovernável”.
Uma pedra no caminho do Novo Trabalhismo (1)
Barry Goldson examina a criminalização da juventude sob Tony Blair.
No início de setembro, Tony Blair pronunciou um discurso em que delineava os contornos para a dita respect agenda (agenda do respeito). Ele enfatizou temas e razões familiares, diferenciando aquilo que definiu como a “maioria ordeira” de uma “minoria ingovernável”. Em muitos aspectos, o discurso de Blair ecoou mensagens que já figuraram em alguns dos principais documentos de estratégia para políticas públicas como “Cortando o crime, garantindo a Justiça: Plano Estratégico para a Justiça Criminal”, publicado em 2004, em que o governo expõe seus planos para “proteger os inocentes” e “enquadrar os culpados”. Mais, a “agenda” é claramente derivada do sentimento à norte-americana de “dureza contra o crime”, expressado por Blair pela primeira vez em 1993.
Na verdade, foi três dias após retornar de uma visita aos EUA em janeiro de 1993, como shadow home secretar (2), que Blair cunhou o que desde então se tornou um refrão do Novo Trabalhismo: “Duro com o crime, duro com as causas do crime”. Blair foi persuadido, por aquilo que viu e aprendeu nos EUA, a seguir o exemplo dado pela New Democratic Coalition (Nova Coalizão Democrática) de Bill Clinton. Clinton havia aparentemente revertido politicamente o crime em resultados eleitorais favoráveis, e Blair pretendeu fazer a mesma coisa. Enquanto ainda estavam na oposição, do início a meados dos anos 90, figuras de destaque do Novo Trabalhismo adotaram progressivamente uma retórica e um simbolismo punitivos, remetendo diretamente à evolução de suas políticas de justiça criminal. Em particular, repostas a jovens infratores se caracterizaram por uma intolerância crescente e isso culminou, em seguida à eleição do primeiro governo do Novo Trabalhismo em 1997, na publicação de um documento governamental (do tipo White Paper ) (3), ominosamente intitulado “Sem Mais Desculpas: Uma Nova Abordagem para Erradicar o Crime Juvenil na Inglaterra e no País de Gales”. Clinton adotou e aplicou a noção de “tolerância zero”. Blair preferiu o “sem mais desculpas”.
O estrangulamento
Desde 1997, os três governos trabalhistas sucessivos vêm procedendo à revisão mais radical do sistema de justiça para a juventude desde a instauração das primeiras cortes juvenis na Inglaterra em 1908. Mesmo uma olhadela esquemática nos desenvolvimentos legislativos principais sugere a extensão, o alcance e a profundidade da reforma, junto com suas prioridades de “endurecimento”.
O “Ato sobre Crimes e Desordem de 1998” permitiu a completa reestruturação do aparato destinado à “justiça para a juventude”, tendo também introduzido um leque de novos poderes e dispositivos judiciais, normalmente repressivos. O “Ato sobre Justiça Juvenil e Evidências Criminais de 1999” introduziu um novo tipo de sentença intervencionista, a ordem referencial, para praticamente todas as crianças e jovens respondendo a julgamento pela primeira vez, tornando-a efetivamente uma sentença obrigatória. O “Ato sobre Justiça Criminal e Serviços dos Tribunais de 2000” aumentou os poderes dos tribunais para penalizarem pais de crianças que não freqüentem a escola regularmente. “O Ato sobre Poderes dos Tribunais Criminais (de Sentenciamento) de 2000” estabeleceu as bases para o monitoramento e a vigilância eletrônica de crianças. O “Ato sobre Justiça Criminal e Polícia de 2001” estendeu a aplicação de toques de recolher para crianças, os poderes dos tribunais de mandarem crianças para prisões e outras instituições de encarceramento temporário, e posteriormente regulamentou a vigilância eletrônica de jovens. O “Ato sobre Reforma Policial de 2002” introduziu “Ordens Relativas a Comportamento Anti-Social” interinas que podem ser impostas até realização de audiência no tribunal. O “Ato sobre Comportamento Anti-Social de 2003” foi implementado logo após a publicação de um White Paper intitulado “Respeito e Responsabilidade: Uma Ofensiva Contra o Comportamento Anti-Social”.
O White Paper em questão apresentava uma duríssima visão sobre uma sociedade na qual os direitos são reservados aos “responsáveis... à maioria decente e obediente às leis”, enquanto a dita “minoria incontrolável” encara um feixe de novas punições e sanções. Crianças são o alvo preferencial dos apontamentos do Ato. Além disso tudo, o Ato sobre Comportamento Anti-Social também tornou os pais das crianças alvos possíveis de ordens estatutárias, podendo estes ser considerados “desordeiros”, “anti-sociais” ou “inclinados ao crime”. O “Ato sobre Justiça Criminal de 2003” deu autorização para a verificação através de teste do uso de drogas por crianças menores de 16 anos e posteriormente estendeu os poderes à imposição de ordens parentais. O “Ato pela Limpeza da Vizinhança e do Ambiente de 2005” trata de um vasto espectro de “comportamentos incômodos” e “incivilidades”, assim como de “ofensas ambientais”. No âmbito específico das crianças e jovens, previsões relativas a “vandalismo”, “grafite” e “outras desfigurações” são as mais passíveis de alegação. O “Ato sobre Crime Organizado Pesado e Polícia de 2005” contém uma série de dispositivos que podem legalmente ser aplicados a crianças, jovens e/ou seus pais, em ocorrências nem um pouco “pesadas”, muito menos “organizadas”. Particularmente dignos de nota são a ampliação do poder de abordagem e de revista/busca, vários apontamentos a respeito de comportamento anti-social, e a imposição de ordens compensatórias parentais, que tornam os pais passíveis de responsabilidade pelo pagamento de compensação cobrada devido ao comportamento de crianças com menos de dez anos.
O alargamento da rede
O aparato expandido de “justiça para a juventude” do Novo Trabalhismo alveja e abarca uma população de crianças em expansão. Reforçadas por construções de “risco”, e apontadas contra crianças “anti-sociais” ou “desordeiras”, assim como contra “agressores” de crianças, as intervenções têm sido aplicadas mais amplamente, e os processos de alargamento da rede são evidentes. Crianças (e em alguns casos também seus pais) que se avalia que tenham “falhado” ou estejam “falhando”, que estejam “apresentando risco” e/ou que sejam “ameaçadoras” (de fato ou apenas potencialmente) são cada vez mais enquadradas na lógica da “justiça para a juventude”. Nesse sentido, a idade mínima para responsabilidade criminal se torna fluida, enquanto as intervenções legais são dirigidas não apenas aos “criminosos”, mas também aos “quase criminosos”, aos “possivelmente criminosos”, aos “sub-criminosos”, aos “anti-sociais”, aos “desordeiros”, aos “potencialmente problemáticos” de uma forma ou de outra.
A lógica das iniciativas preventivas significa que a culpa não é mais o único princípio justificador da intervenção estatal na Inglaterra e no País de Gales. Ao invés disso, ela pode ser acionada sem que uma “ofensa” tenha sido cometida, prevista no lugar uma “condição”, ou um “modo de vida”, que seja avaliada como “falha” ou “que apresenta risco”. Segue-se que os novos modos de classificação de risco e de intervenção preventiva carecem de princípios legais como a “materialidade da prova”, a “dúvida razoável” e o “devido processo legal”. Ao invés disso a intervenção é acionada por estimativa, discricionariedade e pela lógica espúria da predição e da probabilidade. É inevitável que processos assim sejam mediados pelo arranjo estrutural de classe e “raça”. Assim, filhos da classe trabalhadora, bem como filhos de negros e de comunidades étnicas minoritárias, estão cada vez mais tendo que encarar um julgamento legal, e são expostos a modos criminalizantes da intervenção estatal – não apenas baseada no que quer que tenham feito, mas no que poderiam ter feito, em quem são e em quem se pensa que são.
Do estrangulamento ao trancafiamento
Uma confiança cada vez maior na detenção penal é o elemento mais evidente da agenda do “endurecimento” do Novo Trabalhismo. O efeito cumulativo dos desdobramentos das leis de justiça e das políticas para a juventude na Inglaterra e no País de Gales desde 1997 tem sido a expansão e a diversificação substanciais da custódia. Apesar de ser verdade que estas tendências foram iniciadas antes da primeira administração do Novo Trabalhismo, este simplesmente as consolidou desde que assumiu. O número total de sentenças de custódia impostas a crianças aumentou de aproximadamente 4.000 por ano em 1992 para 7.600 em 2001, um aumento de 90%. Durante o mesmo período a população de crianças encarceradas aguardando julgamento cresceu 142%. Só em março de 2004 havia 3.251 crianças (10 a 17 anos) sob custódia penal na Inglaterra e no País de Gales. Nestes dois países pratica-se a custódia penal de crianças mais que na grande maioria dos outros países industrializados democráticos do mundo.
De mãos dadas com a tendência geral da expansão e da diversificação da custódia (onde o setor privado desempenha um papel cada vez mais significativo como provedor), um leque de novos processos penais problemáticos está se materializando. Em primeiro lugar, somando-se ao aumento substancial do número de crianças retidas sob custódia, as sentenças também aumentaram de tamanho, e proporcionalmente mais crianças têm sido condenadas a uma detenção mais longa. Em segundo lugar, as leis e a política do Novo Trabalhismo incentivaram a detenção de crianças mais novas e, em conseqüência, a detenção de crianças com menos de 15 anos tornou-se rotineira. Em terceiro lugar, a virada expansionista foi desproporcionalmente aplicada em termos de gênero, sendo a taxa de crescimento mais alta para meninas que para meninos. Além disso, meninas têm sido regularmente detidas junto com prisioneiros adultos, uma prática que tem sido seriamente questionada por organizações pela reforma penal, assim como pelos inspetores responsáveis pelas penitenciárias. Em quarto lugar, o racismo continua a perpassar os processos condenatórios e os regimes de custódia. Por exemplo, meninos negros são 6,7 vezes mais sujeitos a sentenças de reclusão sob custódia por mais de 12 meses que os meninos brancos, e as crianças negras prisioneiras ainda encontram dentro das instituições de custódia uma adversidade adicional devido a práticas racistas. Em quinto lugar, para todas as crianças prisioneiras a casa de custódia, independente de como estiver preparada, permanece sendo um lugar perigoso. O bem-estar emocional e psicológico dos prisioneiros infantis é rotineiramente agredido, literalmente milhares destas crianças são fisicamente machucadas e, no extremo, as mortes de crianças sob custódia penal continuam a ocorrer com regularidade revoltante. Em sexto lugar, as falhas da custódia penal em prevenir a reincidência são amplamente conhecidas. Em outubro de 2004, por exemplo, um comitê parlamentar relatou que o retorno aos tribunais acontece em 80% dos casos de prisioneiros infantis postos em liberdade e, apesar do investimento substancial de dinheiro público em novas sentenças, regimes e instituições de custódia na Inglaterra e no País de Gales, esta falha continua ocorrendo.
Injustiça e violação de direitos humanos
Em outubro de 2002 o Comitê das Nações Unidas pelos Direitos da Criança expressou formalmente sua “profunda preocupação” com “o alto incremento no número de crianças sob custódia” na Inglaterra e no País de Gales, e sua “extrema preocupação” com “as condições que as crianças experimentam na detenção”, inclusive os “altos níveis de violência, humilhação, danos auto-infligidos e suicídio” entre prisioneiros infantis. Preocupações similares foram expressas por um amplo espectro de organizações pela reforma penal e de agências pelos direitos humanos das crianças, assim como pelo pessoal mais qualificado de oito inspetorados estatutários que concluíram, em 2002, que as crianças prisioneiras “enfrentam o mais grave risco a seu bem-estar”. Além disso, mais para o início do ano corrente o comissário de direitos humanos do Conselho da Europa notou que “podemos unicamente concluir que o serviço prisional está falhando em sua tarefa de cuidar dos internos juvenis”.
É difícil encontrar a “justiça” na política da justiça para a juventude do Novo Trabalhismo. Ainda mais, ela carece de racionalidade criminológica quando avaliada em termos de garantir a prevenção do crime e a segurança da comunidade, e viola sistematicamente os direitos humanos das crianças e dos jovens pegos em sua alvorada. No mais, estas respostas são mera cópia de uma política norte-americana de “endurecimento” que é moralmente falida e extremamente burra.
Notas:
(1) New Labour (Novo Trabalhismo) é um nome alternativo dado ao Labour Party (Partido Trabalhista, atualmente no governo britânico) usado a partir de 1994. O nome foi originalmente usado pelo próprio partido em seus documentos, tendo hoje uso generalizado. O uso deste nome coincidiu com uma movimentação à direita do partido e da cena política britânica em geral.
(2) No sistema de governo britânico (Westminster system, um sistema majoritário), um “shadow minister” (traduzindo literalmente, “ministro sombra”) é um membro de um partido de oposição que faz um contraponto a um Ministro do governo. Os shadow ministers formam um Shadow Cabinet (“gabinete sombra”, contraponto ao Gabinete do governo – este é composto pelos membros do Executivo). O Home Office é o departamento do governo responsável por assuntos internos na Inglaterra e no País de Gales. Suas atribuições o tornam comparável ao nosso Ministério da Justiça.
(3) Um White Paper governamental é uma orientação direta do governo ao Parlamento britânico, no sentido de aprovar leis específicas. Difere do Green Paper, que apresenta propostas mais abertas à discussão, com detalhes a aprofundar em legislação posterior.
Tradução: Victor Neves. As notas são de responsabilidade do tradutor.
Fonte: Revista Socialist Review de Outubro de 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário