A Polícia Federal, Comissão Nacional da Verdade, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e o Ministério Público Federal deram largada ao processo de exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart. A decisão partiu após uma série de depoimentos e testemunhos que indicam que ele fora assassinado no contexto da Operação Condor, cooperação terrorista entre as ditaduras militares do continente, na qual o Brasil era o ponta-de-lança.
É curioso que Jango seja o menos estudado dos presidentes brasileiros, pois foi fruto de um conflito de tendências históricas que não terminou e deixou um legado poderoso para a ordem-do-dia nacional. Não à toa, foi tão estigmatizado pela ditadura e pela própria esquerda. Para a primeira era um traidor de classe e representou a possibilidade de se desmontar a estrutura de dominação brasileira. Para a segunda, porque não era um “revolucionário”, um erro de análise grave que tem por trás o “ideário anexado” e não o Brasil real.
No pocket book “Jango e Eu”, o ex-chefe da Casa Civil do presidente Goulart e um dos pilares da intelectualidade nacional, Darcy Ribeiro, que exerceu seu cargo com trinta e um anos, definiu o projeto político daquele governo como “levar até o fim da Revolução de 30?. Completava dizendo que o caminho brasileiro para a revolução social eram as Reformas de Base, método, por suposto, que completaria o movimento anti-oligárquico que assentou Getúlio Vargas no Catete, destronando o Coronelismo, a Política da Degola e a República do Café-com-Leite, tendo como base o Tenentismo, mas também o alvorecer do sindicalismo no país e a Coluna Prestes, no terreno da incipiente urbanização do Brasil. Desta feita, havia a compreensão mais ou menos conscientemente formulada de que se tratava ali de uma construção socialista, mas, evidentemente, com características brasileiríssimas, como é peculiar todo processo que ocorre no mundo real.
Darcy, sem meias palavras dizia que “Seu projeto [o de Jango] era impor aos antigos donos da máquina política brasileira, extremamente reacionária, um partido de esquerda e de massas que, pelo seu poderio eleitoral, pudesse liderar e impor as reformas de base dentro da democracia (…) Era impor à direita a democracia, a representação eleitoral, o voto maciço para transfigurar o Brasil”.
Santiago Dantas, ao escrever o manifesto do PTB da época, falava de um processo de massas e democrático: “O PTB deve afirmar-se (…) como um partido que se dispõe a liderar a transformação estrutural da sociedade brasileira por métodos democráticos, até onde for indispensável ao bem-estar do povo”. Qualquer semelhança com a concepção e estratégia do partido que nasceu do novo sindicalismo, organizações comunitárias de base da Igreja e ecos da esquerda armada não é mera coincidência. Os impasses de 54 e 64 seguem latentes.
Desde a Proclamação da República, enfrentam-se no Brasil projetos políticos associados à afirmação da soberania nacional e independência ou a associação subalterna com a Metrópole da ocasião. A estrutura social, econômica, política e cultural conservadora que esta segunda opção precisou e precisa para exercer sua hegemonia produziu o trabalhismo como força política e o mais importante: seu legado posterior. Foi este choque que fez o nacionalista Getúlio Vargas assumir um projeto de desenvolvimento que necessitava ser sustentado pelas classes trabalhadores. Ele era produto das classes dominantes e, principalmente, da fração de classe em conflito com a velha oligarquia cafeeira que, vencendo esta última, teve no Estado Novo seu poder organizado, projetando o programa da industrialização, da substituição das importações e o que isso demandava em termos de ordenamento jurídico voltado à assegurar coesão social. Quando houve a adesão à simbiose com os EUA no contexto da Guerra Fria, não havia mais volta. Foi neste marco que se rompe o bipartidarismo criado por Vargas no Estado Novo, com PTB (braço getulista para organizar os trabalhadores) e PSD (braço para organizar as classes dominantes aliadas) se divorciando, indo este se enamorar com o udenismo.
O problema da esquerda não-trabalhista em compreender o processo e o legado trabalhista reside numa caracterização tardia sobre a condição intrinsecamente contraditória entre o nacionalismo e o Imperialismo na periferia global. Isso está tragicamente inscrito na história brasileira com a negativa de Prestes e do recém-fundado PCB em aderirem ao governo gerado pela Revolução de 30. Ao igualar o nacionalismo alemão e italiano – que eram alternativas da alta classe dominante europeia à decadência do liberalismo – ao patriotismo de Perón, Getúlio et alii, perderam-se grandes oportunidades de transformações sociais mais profundas.
Este trabalhismo de Goulart deixou um legado extraordinário a ser aprimorado, como a CLT que, como marco legal, completou a Abolição; o Código Brasileiro de Telecomunicações – cujos vetos do Congresso surtem efeitos nocivos à sociedade até hoje – assim como o projeto de lei sobre o tamanho e posse de terras e quanto ao limite da remessa de lucros ao exterior, pontos nevrálgicos do sistema de dominação imposto ao Brasil a tal ponto que foram o estopim do golpe de 64. Os EUA sabiam que o caminho brasileiro para o socialismo não passava pela propaganda doutrinária, mas pela capacidade de mobilização que avanços sociais reais poderiam detonar no povo e pela capacidade destes avanços sociais desconstruírem a engrenagem sócio-econômico-cultural que fazia do Brasil uma “área de influência”.
As manifestações populares que tiveram início a partir de 07 de junho de 2013 trazendo reivindicações sociais, econômicas e políticas, organizam em seu pano de fundo os impasses não sanados do desenvolvimento brasileiro, que remontam ao período trabalhista e ao confronto com a velha UDN. Um Estado capaz de agir e coordenar o desenvolvimento, oferecendo serviços públicos universais de alta qualidade a partir da escuta da sociedade exige retomar agendas presentes nos enunciados das antigas Reformas de Base e não retomada – não delas em si, mas de seu sentido – poderão ser a explicação para uma eventual interrupção do projeto político consagrado nas urnas desde 2002.
As Reformas de Bases, pelas lutas sociais que desaguaram na Constituinte de 88, estão contidas na Carta Magna sob a forma de objetivos da República, mas devem ser organizadas enquanto tais – PLs, PECs etc – para materializarem o projeto político da Constituição Cidadã.
Por isso, a retomada de uma discussão em torno da tragédia de João Goulart, que será inevitável com a exumação de seu corpo, é muito bem vinda, pois para uma esquerda que se propôs a ganhar eleições e governar democraticamente como estratégia para promover o desenvolvimento nacional, é essencial beber na fonte das experiências anteriores que tentaram o mesmo, especialmente a versão mais consistente dela antes do retorno ao governo de novas forças populares.
A discussão em torno da tragédia de Jango deve ser estimulada para que esta quinta geração de jovens que lideraram manifestações populares no Brasil possa ter uma história com início e meio na qual se balizar para apontar os rumos do projeto e do desenvolvimento nacional.
*Leopoldo Vieira é Assessor Especial da Secretária de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Fonte: http://www.zedirceu.com.br/leopoldo-vieira-o-legado-e-a-atualidade-da-tragedia-de-jango/ acessado em 30 agosto de 2013 às 11h.
Fonte: http://www.zedirceu.com.br/leopoldo-vieira-o-legado-e-a-atualidade-da-tragedia-de-jango/ acessado em 30 agosto de 2013 às 11h.
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